Sobre o inaceitável …
“O jornal é a dor do mundo.” Raimundo Carrero.
Quando era bem pequenino, certa vez meu sobrinho correu para o meio de uma pista movimentada, segurando na mãozinha sua moto que, para ele, era voadora. Me pegou num momento desprevenido, com duas mochilas e algumas sacolas pesadas, enquanto tentava fechar o portão do local de onde saímos. Foi só o tempo de colocá-lo no chão. Em segundos, ele já tinha corrido para a pista.
Nunca me senti tão assustado na vida! Nem mesmo nas minhas situações de quase morte. Nessas ocasiões, sempre pensava na minha mãe. Mas era meu sobrinho aí, e sem pensar, larguei tudo e corri na sua direção. A adrenalina foi tanta que, na ânsia de pegá-lo, o derrubei no chão. Ainda assim, o levantei pela mochila com apenas uma das mãos, jogando-o na calçada. Para nossa sorte, não veio nenhum ônibus na hora, caso contrário, não estaria aqui remoendo essa memória, ainda dolorida.
Tremi tanto em seguida, parecia que ia convulsionar. Em casa, quando contei para minha mãe e irmãs, ninguém diria que por dentro eu estava totalmente quebrado. E elas me disseram que ele já tinha feito o mesmo com as tias. Passei três noites ininterruptas sem dormir, chorando e sofrendo pelo susto e pela possibilidade de tê-lo perdido naquele acontecimento. Durante aqueles dias insones, era um prisioneiro daquela imagem.
No quarto dia, derrotado pelo esgotamento físico, lembro que apaguei na primeira parte da noite, mas era um sono tumultuado, com pesadelos. Até que no meio deles, surgiu uma voz compassiva que dizia algo sobre aceitar o fim e aproveitar o tempo que se tinha. Foi só nesta noite que, finalmente, consegui dormir. Quando acordei, o travesseiro estava encharcado, mas o coração (e o corpo), de alguma forma, aliviado(s). Me esvaziei de toda a angústia do mundo.
Até hoje, aquela visão dele sentado no meio da pista, olhando para as voltas que dava com sua moto voadora, ainda me assombra, mesmo que não com a mesma intensidade. E quando vi a Juliana sentada sozinha, tombando de cansaço na encosta daquele vulcão filipino, imagem semelhante à do meu sobrinho, e sabendo que ela não teve a mesma sorte, me senti mais uma vez quebrado por dentro.
A gente se conforma, com alguma resignação, quando uma pessoa se vai por doença ou idade. Mas a Juliana se foi, quando se poderia ter evitado. Uma perda inaceitável, injusta. E se fosse a filha de qualquer pessoa rica, será que o destino dela seria o mesmo? Sabemos a resposta. A morte da Juliana não foi um acidente. Acidente foi ela ter caído na encosta. A morte dela poderia ter sido evitada.
Certa vez, um professor bombeiro chegou na aula de primeiros socorros visivelmente abalado. Pediu para liberar mais cedo e alguns de nós, estudantes, perguntamos o que tinha ocorrido. Ele contou que tinha vindo de uma tentativa de resgate na qual havia muitas pessoas mortas por eletrocussão numa vala, porque elas tentaram salvar a primeira que tinha caído, e assim se foram não porque não sabiam da eletricidade, mas porque acreditaram realmente que conseguiriam resgatar as caídas.
Mesmo que não soubesse de fatos assim, suspeito fortemente que, se o ocorrido com a Juliana fosse aqui no Brasil, ela ainda estaria entre nós. Tenho grande grau de certeza de que muitas pessoas teriam tentado arranjar maneiras de descer água, comida, agasalho e rádios comunicadores, isso se elas mesmas não descessem elas próprias com essas coisas. Tenho fé nisso, certeza que dispensa prova. Acredito piamente que aqui, ela nunca seria deixada sozinha para trás, para início (final) de conversa.
Mas agora é tarde. Só nos resta o vazio triste e inaceitável de uma ausência antecipada e o sentimento de impotência diante do que nos parece uma incomensurável injustiça. Que a Juliana esteja num lugar mais solidário que o nosso agora.