Jackson de Jesus

... leio e escrevo {códigos}, poesia, (receitas) e prosa...

Alternar entre modo claro ou escuro


Sobre hacker…

“… o problema com estereótipos é que (…) eles são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história.” Chimamanda Adichie.

… como alguém que lê e escreve códigos, poesia, receitas e prosa (não nesta [des]ordem, necessariamente…), uma das questões que mais me intriga é a produção de sentidos na linguagem. Já escrevi um pouco sobre o tema nesse texto: Sobre a palavra desistir… e voltei nele porque, me parece, ainda fazemos confusões com muitas outras palavras e expressões, tais como: (1) surdo-mudo (confusão entre surdez e mudez, tema do futuro texto sobre Libras); (2) dom (ilusão de habilidade sobrenatural); (3) ideologia (originalmente entendida como conjunto de ideias e atualmente confundida aos poucos com a palavra narrativa); (4) lugar de fala (como impossibilidade de apoiar uma causa sem pertencer ao grupo reivindicador); (5) aborto (quando se quer expressar direito ao aborto); (6) racismo reverso (expressão sem nenhuma correspondência com a realidade observável e usada de forma tendenciosa para deslegitimar o combate ao racismo, esse, sim, bem real); dentre outras… tudo isso para dizer que uma das confusões que mais me incomoda é o sentido negativo associado a palavra hacker.

Divagação: Na (in)disciplina Análise de discurso (AD), o discurso é visto como efeito de sentidos entre interlocutores. Uma definição muito parecida com o conceito de gravidade, da Astronomia, que seria o efeito da curvatura do tecido espaço-tempo…). Fim da divagação.

Voltando ao termo hacker, ouvi dizer que os jornalistas não gostam do atual sentido da expressão “fake-news” porque, segundo eles (apud, alguém que ouvi dizer, rs), se é fake, não é news. É um argumento bem óbvio e, por alguns nanosegundos, quase me solidarizo com eles, até me lembrar que foram eles também (através da mídia hegemônica) os responsáveis pela popularização do termo hacker com o sentido negativo (mas não guardo mágoas, a vida é curta).

Atualmente, o termo hacker é usado exclusivamente com o sentido de invasor, alguém mal-intencionado que viola regras de segurança; que é um dos aspectos da atividade hacker, mas nem de longe o mais importante, nem o mais comum. O que os jornalistas parecem ignorar intencionalmente é a existência de outros termos, como, por exemplo, “cracker” (não o biscoito, ou bolacha, não vamos nos perder na matéria escura dessa discussão), que descreve de forma mais precisa o praticante de crimes virtuais. Por que eles não usam a definição correta? Quem melhor explica essa confusão e sua origem é o Richard Stallman (RMS), neste recorte de seu artigo intitulado “On hacker”:

Por volta de 1980, quando a mídia notou os hackers, eles se fixaram num aspecto restrito do verdadeiro hacking: a quebra de segurança que alguns hackers ocasionalmente faziam. Eles ignoraram o resto e entenderam que o termo significa quebra de segurança, nem mais, nem menos. Desde então, a mídia divulgou essa definição, desconsiderando nossas tentativas de corrigi-la. Como resultado, a maioria das pessoas tem uma ideia equivocada do que nós, hackers, realmente fazemos e pensamos. (Tradução nossa).

Só (re)lembrando que Richard Stallman foi o cara que hackeou a ideia de Copyright, como descreve a Aracele Torres em sua bem escrita dissertação de mestrado (que virou livro), A tecnoutopia do software livre: uma história do projeto técnico e político do GNU.

Mais divagações… O RMS me lembra o Paulo Freire, que ao meu ver, também hackeou a educação a partir de sua práxis; ambos visando o benefício da coletividade.

Voltando à citação anterior, a analogia que faço para reforçar o que o RMS diz seria imaginarmos uma pizza de tamanho família (relembrando que pizza é uma preparação histórica e socialmente pensada para ser compartilhada). A massa seria a habilidade técnica, o molho, a criatividade e as fatias (e diferentes sabores) representariam os diversos aspectos do hacking: habilidades em escrita de software (a programação geral), a habilidade em (re)projetar coisas (os primeiros hackers), a habilidade de obter informações sensíveis na lábia (engenharia social) para ter acesso a informações protegidas, etc.

A atividade hacker é mais do que apenas uma parte do todo, ela é mais ampla do que uma única fatia e justamente por isso, está dispersa de forma não homogênea nas atitudes, comportamentos e conhecimentos técnicos específicos de cada área do saber; além de florescer num ambiente favorável ao compartilhamento (solidariedade). A pessoa hacker não tem nenhum dom especial (volta lá no primeiro parágrafo) além de seu interesse apaixonado em sua área de atuação que, por consequência, naturalmente se reverte em seu aperfeiçoamento (e por vezes, destaque) pessoal; o que nos leva a percepção de que o hacktivismo (hack + ativismo) não se restringe a área de tecnologia.

Parênteses em forma de um pouco de achismo: ao meu ver, o corpo de bombeiros me parece um exemplo real de instituição com atitude hacker, porque a dedicação voluntária (ainda que a partir de escolha profissional) em desenvolver competências psicomotoras de primeiros socorros e sobrevivência (habilidades técnicas) para salvar vidas (colocando a sua própria em risco) em situações reais de perigo exigem muito de doação pessoal (solidariedade). Fim do parênteses.

Fora da definição de hacker, o cracker é apenas alguém que faz mau uso do que é produzido pelos hackers (ele só copia e cola). Por exemplo, o garoto que rouba contas de redes sociais (denominado de Script Kiddie) é um cracker que faz uso indiscriminado de programas geradores de senhas (estilo o crunch) para salvar em disco um arquivo de senhas que, por sua vez, será usado em conjunto com programas de ataques de invasão por força bruta (tipo o hydra).

Na mesma situação, um hacker, além de pensar na criação de suas próprias ferramentas ou em usos diferentes das já disponíveis (talvez maneiras de gerar os mesmos dados do arquivo de senhas a partir do terminal, mas sem a necessidade de salvar em disco, evitando assim os custos de processamento de entrada e saída e registros auditáveis, por exemplo…) também vai refletir sobre as implicações de seus usos, independente do julgamento moral de suas ações e intenções. Em resumo, o primeiro apenas usa, geralmente em benefício próprio (porque é alfabetizado digitalmente), enquanto o segundo, além disso, pensa sobre suas responsabilidades sociais (porque tem letramento digital).

Se não fosse os primeiros hackers, que acreditavam nos ideais de democratização das tecnologias, a internet não teria saído das bases militares nem das universidades. Muito antes disso, se a Hedy Lammar (a partir de seus conhecimentos musicais) não tivesse pensado o “sistema de alternância de sinal de rádio para ser usado em torpedos e despistar radares nazistas”, não teríamos hoje as redes sem fios. Se a Cecilia Payne não tivesse aprofundado as observações catalogadas pelas “computadores de Harvard (grupo de mulheres mal pagas da mesma instituição), hoje não saberíamos a constituição física das estrelas. Se a Sister Rosetta Tharpe não tivesse impresso na música de seu tempo seu estilo único, hoje não teríamos o Rock and roll. Se a Emmy Noether não tivesse”viajado” com seu jeito de pensar abstrações matemáticas, hoje não teríamos dado o salto que nos levou a Teoria da Relatividade…

Claro que as mulheres acima citadas não são reconhecidas como hackers, porque este termo é recente e atualmente está fortemente associado as novas tecnologias. Mas as coisas impressionantes que elas fizeram se encaixam na definição de hacker (inteligência, criatividade e compartilhamento). E não, as grandes celebridades masculinas e atuais das big techs (não vou citar nomes) que se destacaram no ambiente corporativo empresarial não são pessoas hackers, simplesmente porque o contexto desses é totalmente contrário ao aspecto da solidariedade expressa pela democratização do conhecimento; marca do ethos hacker.

Por ora, apesar de geralmente evitar dizer o óbvio (como todo soteropolitano), devo registrar que citei apenas mulheres, não para reforçar a ideia negativa atrelada ao termo hacker aos preconceitos imputados a elas pelo nosso machismo cotidiano (coisa de mulher). Ao contrário, quero chamar a atenção para o fato da atitude hacker ter a ver com pensamento criativo e habilidades específicas (desenvolvimento de inteligências múltiplas, além do sentimento de solidariedade) e isso independe de gênero; como bem argumenta a Chimamanda na sua apresentação sobre Todos devemos ser feministas. O termo hacker continua sendo mal-empregado no nosso tempo pelo mesmo motivo que essas mulheres (e tantas outras) foram (e continuam sendo) maltratadas pelo nosso machismo persistente: ignorância (e mesmo assim elas moveram nosso mundo)!

Ah, última lembrança: tecnologia nunca foi sobre computadores, é sempre sobre pessoas…

Voltar para a página Textos…


Não é uma newsletter (ainda, talvez um dia, quem sabe...), mas se quiser receber uma mensagem quando eu publicar texto novo, só informar seu nome e e-mail no formulário abaixo (abre em nova aba para verificação CAPTCHA). Caso queira acompanhar via RSS, só copiar este link no seu agregador favorito.


""
""